O invulgar “Fado” da devolução de um abutre-preto à natureza

Novembro 3, 2021

O dia 27 de outubro vai ficar marcado como mais um momento que tem tanto de invulgar como de mágico (algo a que a natureza nos vai habituando com a sua natural imprevisibilidade e magnificência): a devolução à natureza do abutre-preto chamado Fado, numa bonita ironia do destino.

A imprevisibilidade da natureza

Estávamos no dia 24 de Agosto, em mais um dia de trabalhos de campo para a equipa da Rewilding Portugal. Seria, a princípio, um dia tranquilo e parecido a tantos outros, mas a verdade é que já nos vamos sempre habituando a que a natureza nos surpreenda e nos vá mudando os planos na fluidez dos seus processos naturais. Dois técnicos de campo da nossa equipa, Pedro Ribeiro e André Couto, encontravam-se a trabalhar na Serra da Malcata quando, numa estrada em terra batida, se depararam com um dos animais mais imponentes dos nossos ecossistemas: um abutre-preto. Um exemplar muito jovem, desta que é a maior ave de rapina da Europa e a segunda maior do mundo, encontrava-se parado na estrada, visivelmente frágil e debilitado. Embora esta espécie possa chegar aos 120cm de altura e ter uma envergadura de asas de até 310cm, esta cria tinha nascido apenas este verão e apresentava muitos sinais de desnutrição, precisando de receber apoio profissional.

Depois de contactada a equipa do ICNF, responsável por realizar este tipo de resgates nestas situações, a melhor solução encontrada para conseguir ajudar de forma imediata o animal, foi ser transportado diretamente pela equipa da Rewilding Portugal até uma equipa do ICNF para depois poder ser encaminhado para um centro especializado de recuperação de vida selvagem, neste caso o CERVAS, localizado em Gouveia. E é nesta viagem, que acabaria por salvar a vida a este animal, que se cumpriu o fado de o seu próprio nome se vir a tornar Fado.

Pedro Ribeiro, técnico de campo da Rewilding Portugal, conta o sucedido. “Eu e outro colega meu encontrámos este abutre-preto na Serra da Malcata, numa estrada em terra batida, e não se mexia, estava muito cansado e magro. Era um jovem acabado de sair do ninho e nós apanhámo-lo e entregámo-lo no ICNF que depois o encaminhou para o CERVAS para recuperação”, explicou. “Tem este nome porque quando o apanhámos e o transportámos, o abutre estava muito stressado, assustado e mexia-se muito e a mais de meio do caminho ligámos o rádio baixinho e quando começou a tocar fado numa das rádios, e a verdade é que ele acalmou-se e percebeu que estava tudo bem e fez a viagem muito mais tranquilo”, contou ainda. Tocava portanto fado numa das rádios no preciso momento em que este foi ligado. E coincidência do destino, o abutre-preto aceitou a ajuda que precisava e deixou-se levar naquela jornada que mal ele saberia que seria a sua viagem de volta para a liberdade quando estivesse pronto. E neste fado imprevisível com que a natureza nos brindou, o nome surgiu naturalmente, Fado.

O regresso ao selvagem

Desde o momento do seu resgate, o Fado encontrou-se então a recuperar nas instalações do CERVAS, onde ganhou peso (mais que o duplicou) e recuperou as forças necessárias para poder voltar onde pertence: ao mundo natural. Quando chegou pesava apenas 3,5 quilos, quando o normal para um abutre-preto, ainda que juvenil, é superar os 6 quilos. Naquela altura de verão em que os juvenis saem do ninho e aprendem a voar e explorar o território pode fazer com que alguns se afastem em demasia e acabem por se desorientar, voando grandes distâncias sem rumo até à exaustão, como aconteceu com o Fado, que foi encontrado desnutrido e desidratado. Nestes dois meses de recuperação no CERVAS, não só ganhou peso como exercitou as asas num túnel de voo.

A Rewilding Portugal acompanhou todo o seu desenvolvimento ao longo destas semanas e irá agora acompanhar as muitas viagens e aventuras que o Fado terá certamente para contar neste seu percurso de descoberta e exploração, enquanto se vai tornando adulto para depois poder ele próprio constituir família e nidificar, dando um importante contributo para a conservação e continuidade da espécie. Para tal, foi-lhe colocado um transmissor GPS que permitirá saber para onde se desloca, assim como os seus pontos habituais de alimentação e dormitório.

A devolução à natureza aconteceu no dia 27 de outubro e contou com vários elementos de todas as equipas envolvidas: CERVAS, ICNF e Rewilding Portugal, assim como alguns membros da comunidade apaixonados pela vida selvagem e ainda uma turma de pré-escolar que teve o primeiro contacto de sempre com a espécie, numa iniciativa realizada conjuntamente com o município do Sabugal, que esteve representado na figura da sua vice-presidente. A devolução aconteceu em Fóios, no concelho do Sabugal, na Serra das Mesas, e foi realizada conjuntamente com a devolução de um grifo à natureza, que esteve em recuperação em condições idênticas às do Fado.

Esta ação de monitorização enquadra-se no projeto “Promover a Renaturalização do Grande Vale do Côa”, coordenado pela Rewilding Europe, e que conta com a financiamento do Endangered Landscapes Programme e da Fundação ARCADIA. Esta monitorização tem um papel importante de mapear estas localizações e partilhar a informação com as autoridades portuguesas e espanholas, já que é relevante a nível de ordenamento territorial, pois nestes lugares de dormitório deve ser minimizada a perturbação, evitando alterar os usos do território e a presença de infraestruturas. É ainda fundamenta, estudar os hábitos alimentares destas aves para evitar a dispersão da espécie do seu habitat, podendo com estas informações, em última instância “melhorar-se a gestão de fontes de alimento para estas aves necrófagas e apoiar o restauro de cadeias tróficas (alimentares) locais. E vai permitir reforçar o corredor de vida selvagem ao longo de 120 mil hectares de terreno no Vale do Côa”, explica Sara Aliácar, técnica de conservação da Rewilding Portugal.

Acompanhando os seus movimentos e estudando os seus comportamentos, a Rewilding Portugal pretende apoiar assim esta espécie em perigo e permitir que esta cumpra o seu papel fundamental nos ecossistemas para que estes se tornem cada vez mais funcionais e completos.

 

O abutre-preto e as suas características

 

O abutre-preto é uma das 3 espécies de abutres que habitam em Portugal, a par do abutre-do-Egipto e do mais reconhecido e avistado, o grifo. À exceção do grifo, as duas restantes, a par do quebra-ossos que apenas tem registos esporádicos no nosso território neste momento, estão em risco de extinção. Para além das enormes dimensões já referidas, que o tornam uma ave de rapina de destaque no mundo inteiro, o abutre-preto pode chegar a pesar praticamente 12 quilos. A plumagem é preta-acastanhada, praticamente uniforme em todo o corpo, não tendo penas na cabeça. Esta espécie nidifica sobretudo em bosques mediterrânicos e montados, construindo ninhos principalmente em sobreiros e em azinheiras, sendo que as posturas ocorrem entre fevereiro e abril, quase sempre compostas por apenas um ovo. Como ave necrófaga que é alimenta-se quase exclusivamente de cadáveres de animais mortos. Ao contrário de outras grandes aves, como as águias, os abutres, incluindo os abutres-pretos não possuem bico e garras afiadas nem um voo ágil adaptado a caçar animais vivos e em bom estado de saúde. Este papel fundamental nos ecossistemas torna estas aves necrófagas numa verdadeira brigada de limpeza que torna completo o círculo da vida, dando-lhe funcionalidade e tornando-o completo.

A grande envergadura das asas, já anteriormente referida, permite-lhes realizar voos planados de dezenas ou centenas de quilómetros em busca de alimento. Os abutres possuem uma excelente visão que utilizam para detetar cadáveres à distância. Ao contrário do que muitas vezes é dito, os abutres não detetam carcaças ou animais moribundos através do cheiro, a decomposição ou a sangue, uma vez que todas as espécies de abutres da Europa, Ásia e África têm uma capacidade de olfato muito fraca e utilizam a visão. Apenas algumas espécies de abutres das Américas usam o cheiro a carne em decomposição para encontrar alimento.

Sendo o seu estatuto de conservação em Portugal de Criticamente em Perigo (CR), existem várias ameaças responsáveis por esta situação débil da espécie no nosso território: intoxicação e envenenamento; eletrocussão e choques com linhas elétricas; perturbação humana; destruição de habitat, particularmente; e ainda, a redução das densidades de algumas espécies cujas carcaças são as de que este se alimenta maioritariamente (ex. coelho-bravo).

 

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