O regresso do corço a terras de lobo

Março 24, 2021

O corço é um pequeno cervídeo nativo em Portugal e umas das principais presas do lobo-ibérico. Embora a espécie esteja em recuperação, é necessário reforçar a viabilidade das suas populações e permitir ao corço desempenhar o seu papel nos ecossistemas.

Fotografia de domínio público
Public Domain photo

O papel do corço

O corço é um pequeno cervídeo, mais discreto que o veado ou o gamo, mas conhecido por se adaptar a uma ampla variedade de habitats. Apesar de preferir paisagens com mosaicos de floresta e áreas abertas, também pode ocorrer e até estabelecer-se em locais menos arborizados, desde que existam áreas de matos altos e densos que proporcionem refúgio e alimento.

Tal como os outros herbívoros silvestres, o corço pode desempenhar um papel importante na dinâmica da paisagem. Alimentando-se de vegetação, o corço desempenha o seu papel na criação de descontinuidades na paisagem e reduz o risco de propagação de incêndios, contribuindo também para a criação de nichos ecológicos para outras espécies.

O seu papel enquanto presa é de extrema importância nos ecossistemas, já que é uma das principais presas do lobo-ibérico, podendo compor grande parte da dieta deste carnívoro. Devido à sua grande adaptabilidade, ambas as espécies ocupavam, na sua distribuição original, praticamente todo o território nacional. Vários estudos em países mediterrânicos sugerem que o lobo se alimenta preferencialmente de ungulados silvestres, sempre que a comunidade de ungulados seja diversa e as populações abundantes . Nas áreas em que existe gado, um fator fundamental é também o tipo de maneio do mesmo, pois este pode aumentar ou reduzir o risco de predação nos efetivos pecuários.

 

Do quase desaparecimento até à recuperação

No início do séc. XX o corço tinha desaparecido de quase todo o território português, muito devido à caça excessiva e a uma grande regressão das florestas (devido à atividade agrícola e também pastorícia). As últimas populações de corço estavam restritas a algumas serras do norte do país, nomeadamente  às regiões das serras da Peneda e Gerês, Alvão e Marão, Montesinho e Nogueira.

No entanto, a sua adaptabilidade e resiliência, aliadas à expansão natural da espécie e a vários projetos de reintrodução nas décadas seguintes, tanto em Portugal como em Espanha, o corço conseguiu recolonizar uma boa parte do território original, estando presente hoje em dia em todo o norte do país e no centro-interior de forma mais ou menos contínua, e com alguns núcleos dispersos no resto do país. Existem, no entanto, muitas áreas da sua distribuição original onde o corço está ausente ou em números extremamente baixos, inviabilizando as funções que a espécie desempenha no ecossistema, como criar descontinuidade e reduzir biomassa vegetal ou ser alimento frequente do lobo-ibérico.

Fotografia de domínio público

 

O projeto LIFE WolFlux

A monitorização das presas silvestres do lobo-ibérico realizada no âmbito do projeto LIFE Wolflux, pela Universidade de Aveiro (entidade coordenadora desta ação) com o apoio da Rewilding Portugal, revelou que, apesar do corço ter uma distribuição mais ampla e ser mais abundante na região Este da área do projeto (e.g., Serra da Malcata e  Vale do Côa),  a sua abundância é muito reduzida nas serras a norte do distrito de Viseu e na Serra da Estrela.

Um dos objetivos do projeto LIFE WolFlux é aumentar a abundância e distribuição de corço em áreas estratégicas através de reforços populacionais, de ações de restauro de habitat, e de planos globais de gestão. É expectável que a combinação destas ações com o aumento das medidas de prevenção de prejuízos – como cães de gado e vedações – que também estão a ser apoiadas pelo projeto LIFE WolFlux – contribuam para uma diminuição de prejuízos na pecuária provocados pelo lobo.

O conhecimento da situação populacional dos ungulados silvestres, acompanhada da sua gestão e do envolvimento social, são componentes importantes na conservação do lobo-ibérico.”, refere João Carvalho, biólogo da Universidade de Aveiro, sobre a importância deste trabalho no terreno.

A equipa do projeto LIFE WolFlux está agora a executar os trabalhos de preparação e planificação que, se concluídos com sucesso, ajudarão a que o corço prospere em áreas-chave onde o habitat para tal é adequado, mas onde a espécie está neste momento ausente ou presente em números muito reduzidos.

 

Casos de sucesso

O planeamento destas ações de reforço populacional segue o exemplo de sucesso de outras ações de reintrodução de corço, como as realizadas desde 2013 nas serras da Freita, Arada e Montemuro pela Associação de Conservação do Habitat do Lobo-Ibérico (ACHLI) e pela Universidade de Aveiro. Os animais reintroduzidos nestas serras deram origem a uma população reprodutora que continua em expansão e que serve de presa ao lobo-ibérico.

A reintrodução ou reforço populacional de cervídeos também tem sido realizada com sucesso noutras iniciativas de rewilding pela Europa, como nas montanhas Ródopes, onde as populações iniciais de veado e gamo se encontram atualmente  em expansão. Desde o começo do trabalho da Rewilding Rhodopes, nos últimos cinco anos, já foram  introduzidos mais de 400 gamos e 50 veados. Estas espécies, que precisam de ter pelo menos populações de 50 animais adultos para serem viáveis, foram caçadas até à extinção, nomeadamente na Bulgária, e estão agora a recuperar finalmente o papel que tiveram outrora na paisagem.

Os reforços populacionais têm sido feitos em pontos distintos e sem contato direto entre si, para que com o crescimento natural destas novas populações, as mesmas se possam vir a conectar de forma natural no futuro, recuperando as espécies e permitindo-lhes cobrir todo o lado este das montanhas Ródopes.

Além disso, esta medida de reforço populacional na região visa ainda, a longo prazo, aumentar a disponibilidade de alimento natural (cadáveres neste caso) para a crescente população de grifos presentes na Bulgária, que neste momento está ainda demasiado dependente de estações de alimentação artificiais. A equipa da Rewilding Rhodopes garante ainda que a presença destas espécies herbívoras selvagens e o pastoreio natural que praticam “ajuda a manter e aumentar a biodiversidade, mantendo paisagens abertas”.

Veado nas Rhodope Mountains. IMAGE: (C) BOGDAN BOEV

 

Sobre o nosso projeto

O projeto LIFE WolFlux é financiado pelo programa LIFE da Comissão Europeia e cofinanciado pelo Endangered Landscapes Programme, e tem em vista a melhoria das condições de subsistência do lobo-ibérico a sul do rio Douro, assim como o objetivo de melhorar a coexistência entre a espécie e as comunidades locais.

A Rewilding Portugal conta com os seus parceiros neste projeto: Rewilding Europe, ATNatureza, Universidade de Aveiro e Zoo Logical.

Fotoarmadilhagem da Rewilding Portugal
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