No passado dia 4 de setembro, a Comissão Europeia emitiu um comunicado de imprensa oficial instando as autoridades locais e nacionais a tomar medidas nos casos em que a concentração de alcateias de lobo se tenha tornado um perigo para o gado e para as pessoas. Em resposta ao comunicado de imprensa da Comissão sobre os “Lobos na Europa”, a Rewilding Portugal enviou uma resposta oficial para comunicar as nossas preocupações sobre a abertura desta porta para atualizar o quadro legal sobre o estatuto de proteção do lobo para adicionar mais flexibilidade, com um comunicado de imprensa carregado de distorção factual e demagogia, uma irresponsabilidade que pode colocar em risco o lobo, bem como os esforços e investimentos realizados nas últimas décadas para recuperar a espécie e avançar num caminho de coexistência.
Transcrevemos de seguida a resposta enviada pela Rewilding Portugal à Comissão Europeia sobre este assunto
Em resposta ao comunicado de imprensa da Comissão Europeia sobre os “Lobos na Europa”, datado de 4 de setembro de 2023, gostaríamos de comunicar as nossas preocupações sobre a abertura desta porta para atualizar o quadro jurídico sobre o estatuto de proteção do lobo para adicionar mais flexibilidade. O comunicado de imprensa está repleto de distorção factual e demagogia, uma irresponsabilidade que pode colocar em risco o lobo, bem como os esforços e investimentos realizados nas últimas décadas para recuperar a espécie e avançar num caminho de coexistência.
Na Europa, existem muitas iniciativas de cooperação entre criadores de gado, caçadores, ONGs de conservação e governos, muitas delas financiadas pelo programa LIFE da Comissão Europeia, que contribuíram para conservar e aumentar a população de lobo em muitas áreas, desenvolver e provar a eficácia de vários instrumentos de prevenção de danos e melhorar a colaboração e a governação entre as partes interessadas. Estas histórias de sucesso, alcançadas por muitas organizações em vários países, deveriam ser uma bandeira para a Comissão Europeia e ilustrar o caminho a seguir.
Alguns factos sobre lobos na Europa
- Lobos não representam risco significativo para as pessoas. Na verdade, é muito mais provável que os europeus sejam feridos por vacas do que por lobos. De acordo com o relatório “Wolf attacks on humans: an update for 2002-2020” pelo Instituto Norueguês de Investigação da Natureza, os riscos associados a um ataque de um lobo a um ser humano são “superiores a zero, mas demasiado baixos para serem calculados”. Os lobos têm medo dos seres humanos e esforçar-se-ão sempre por evitá-los.
- Mais de 900 lobos são deliberadamente mortos todos os anos na União Europeia, indicando que existe atualmente uma flexibilidade considerável na gestão e na interpretação do quadro pelos diferentes governos. Além disso, o controlo letal revelou-se ineficaz na redução dos danos, pelo contrário, pode muitas vezes provocar efeitos contrários, pois desestabiliza frequentemente a estrutura social das alcateias, que acabam por se alimentar da presa mais fácil, o gado desprotegido.
- Apesar da tendência globalmente positiva da população de lobo na Europa, existem ainda muitas populações de lobo que apresentam um estatuto de conservação desfavorável. É o caso, por exemplo, do segmento subpopulacional português a sul do rio Douro, que está intimamente dependente da recuperação global – demográfica e genética – da população de lobo ibérico do noroeste, que se encontra atualmente totalmente protegida. O retrocesso no estatuto de proteção da população do noroeste ibérico e o regresso ao cenário anterior de vários enquadramentos legislativos nos segmentos subpopulacionais, pode condicionar gravemente a viabilidade da subpopulação portuguesa a sul do rio Douro e agravar a situação de toda a população do noroeste ibérico, já classificada como Quase Ameaçado, pela IUCN.
- A predação do gado é o principal desafio à coexistência com os lobos na Europa e em todo o mundo.Lobos matam entre 30 e 40 mil gado doméstico anualmente na Europa, maioritariamente ovelhas. Ainda assim, isto representa apenas 05% dos ovinos invernantes na Europa, por isso os lobos não são uma ameaça para a produção animal, apesar de poderem ter um impacto local para determinados agricultores. Como resultado dessa predação, cerca de 8 milhões de euros são pagos anualmente para compensar essas perdas de gado na Europa. De um ponto de vista económico, e em comparação com os subsídios multimilionários à agricultura na Europa, distribuídos através da Política Agrícola Comum (PAC) – que representam 30% do orçamento da União – isto é uma gota no oceano.
Prevenção de danos: o caminho para continuar
As medidas de prevenção dos danos constituem a forma mais eficaz e racional de melhorar a coexistência. Essas práticas incluem o treino de cães para proteção dos rebanhos, a educação dos pastores e várias medidas de dissuasão que se revelaram instrumentos eficazes para evitar os danos causados pelos lobos, mas que continuam a ser subutilizadas. Além disso, estas medidas começam normalmente a ser aplicadas quando os danos já ocorreram e os conflitos já surgiram. Começar a efetuar uma prevenção precoce em áreas onde o lobo tem regressado recente e em áreas onde a espécie se pode expandir num futuro próximo, antes que os danos ocorram, é fundamental para promover uma coexistência positiva.
O apoio financeiro disponível através do Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER) também pode melhorar a coexistência, nomeadamente através de investimentos e de pagamentos acrescidos para zonas onde a presença de grandes predadores possa ter um impacto negativo no pastoreio. Todos estes mecanismos de apoio estão atualmente a ser subutilizados. Em Portugal, por exemplo, os cães de guarda de gado são apoiados pelo FEADER desde 2015, o que alargou a sua utilização, mas não existe uma linha específica para apoiar outros métodos preventivos.
Além disso, há uma falta de apoio técnico aos criadores de gado sobre como implementar corretamente as medidas de prevenção de danos (por exemplo, educar bons cães de guarda de gado) e quais as que melhor se podem adaptar aos seus sistemas de gestão. É necessário que o acesso a uma variedade de medidas de prevenção de danos se torne fácil e acessível para os criadores de gado. Existe uma grande oportunidade para a Comissão Europeia incentivar os Estados-Membros a avançar nesta direção.
As Orientações da União Europeia relativas aos auxílios estatais no sector agrícolapermitem que os Estados-Membros da UE concedam uma indemnização total aos agricultores pelos danos causados por animais protegidos, como os lobos, e reembolsem integralmente os custos dos investimentos efectuados para evitar esses danos. No entanto, é necessário reforçar os sistemas nacionais de indemnização para que sejam rápidos e justos para os criadores de gado, evitando a fraude e desencorajando a inação na aplicação de medidas de prevenção de danos. Esta é uma exigência antiga de muitos criadores de gado em muitos países, incluíndo em Portugal. O Comité AGRI recebeu já há cinco anos, num relatório que lhe foi solicitado, a recomendação de utilizar dinheiro para apoiar os agricultores na prevenção de danos ou no pagamento do risco de exposição, e reduzir o sistema de compensação para casos inevitáveis.
O desafio da predação ao gado é exacerbado pelo facto de muitas paisagens europeias terem poucas presas para sustentar os lobos. É o caso de Portugal, onde as alcateias de lobos em perigo de extinção a sul do rio Douro dependem apenas do gado para se alimentarem. Existem diversos estudos que demonstram que a diversidade de presas selvagens e a existência de gado abundante e protegido são factores críticos para evitar ou reduzir a predação sobre o gado. Os dados recolhidos pela Universidade de Aveiro através do projeto LIFE WolFlux, financiado pela Comissão Europeia, mostram um aumento da percentagem de javali na dieta das alcateias à medida que a espécie aumentou em número e se expandiram as medidas de prevenção de danos no gado (Lino et al., submetido para publicação).
Esperamos que a Comissão Europeia seja um exemplo de boa elaboração de políticas e de gestão responsável da vida selvagem, orientada por dados científicos, que incentive a coexistência com a vida selvagem europeia e o diálogo entre as partes interessadas, a fim de alcançar compromissos a longo prazo para a proteção do gado e a conservação do lobo na Europa. Os lobos são uma espécie fundamental para a manutenção de ecossistemas funcionais e estamos apenas a começar a permitir-lhes prosperar após séculos de perseguição. A Comissão Europeia está a liderar uma estratégia notável de recuperação e conservação da natureza, na qual o lobo deve ser um elemento-chave para mostrar que um futuro em que os europeus e a vida selvagem vivam lado a lado é possível para as gerações actuais e futuras.
Medidas preventivas como a integração de cães de guarda de gado e vedações à prova de lobo estão a ser eficazes no aumento da coexistência entre grandes predadores e populações locais. Créditos: Blue Nomads
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