Raquel Filgueiras é portuguesa e faz parte, desde 2019, dos quadros da Rewilding Europe, pertencendo à equipa de diretores de rewilding da organização. Nesta entrevista, ficamos a conhecer melhor o seu percurso e a sua visão de rewilding para Portugal e para o Grande Vale do Côa, assim como as estratégias europeias de futuro.
O que que diferencia o rewilding de outras abordagens de conservação da natureza?
Para mim, o que diferencia o rewilding de outras abordagens de restauro mais tradicionais é que o rewilding se concentra em trazer de volta processos naturais “ameaçados ou extintos” que tornam este planeta funcional. É também uma abordagem de restauro onde aceitamos que, primeiro, não sabemos tudo e, segundo, confiamos que a natureza pode cuidar de si mesma e de nós também. Rewilding significa deixar que os sistemas naturais decidam o que acontece nas paisagens e aprender a viver nessa nova realidade, que acreditamos ser melhor para as pessoas do que a atual. Porque rewilding é também reconhecer as pessoas como parte da paisagem, reconhecer a nossa presença e a nossa influência neste planeta, e encontrar formas de coexistência e de as pessoas prosperarem nessa nova realidade.
Rewilding também é sobre aceitação, valorizando a natureza e confiando nela para nos mostrar o caminho. Aceitar que estamos no século XXI e que o que está aqui agora pode não ser a mesma coisa que estava há alguns milhares de anos ou mesmo algumas centenas de anos atrás. Não podemos recriar o passado, mas podemos pegar em elementos deste e orientar a nossa abordagem pelo que existia antes.
Mais do que falar de espécies, é importante focarmo-nos nos “motores” que fazem a natureza funcionar, processos naturais como cadeias tróficas completas e ricas. Com cadeias tróficas completas, um equilíbrio dinâmico evoluirá com predadores, equilibrando o papel dos herbívoros no seu impacto nas pastagens e nas florestas, ao abrirem grandes extensões de vegetação e, ao fazê-lo, reduzindo a probabilidade de incêndios catastróficos e criando habitats para muitas outras espécies.
A escala também é muito importante na renaturalização. A maioria dos processos naturais só pode funcionar a um nível de paisagem (por exemplo, os herbívoros precisam de migrar, os rios precisam de espaço para seguir o seu curso). Mas há duas outras escalas que são importantes. A escala de tempo, porque enquanto a natureza é rapidamente destruída, levam-se depois décadas para restaurá-la. E por último a escala de abundância, e com isso quero dizer a quantidade de biomassa que existe numa determinada paisagem, desde o número e diversidade de animais até ao tamanho e diversidade de árvores. A maioria de nós nasceu num Portugal já bastante pobre, com pouca diversidade de espécies e pequenas manchas de habitats naturais. Mas o nosso Portugal pode conseguir muito mais e pode ser muito mais rico em biodiversidade do que agora. Nós simplesmente ainda não vimos esse potencial e, portanto, muitos de nós não acreditam. Quando pensamos em rewilding pensamos imediatamente em toda uma paisagem, e queremos ver mais a natureza como um todo.
A Rewilding Europe publicou recentemente a sua estratégia 2030 – o que destacarias dessa estratégia, ou o que consideras mais interessante para o contexto português?
Esta estratégia é um caminho claro do que queremos alcançar nos próximos 10 anos, com os nossos parceiros em toda a Europa. Provavelmente, uma das nossas metas mais importantes para 2030 é ter práticas de rewilding implementadas em mais de 500.000 hectares em todo o continente europeu. Queremos conseguir isso principalmente através de acordos de gestão com proprietários de terras, bem como através de arrendamentos de terras ou utilizando outros instrumentos legais. Queremos também apoiar e fornecer orientação aos proprietários de terras em toda a Europa para utilizarem práticas de rewilding nas suas próprias terras, com um mínimo de 250.000 hectares. Existem muitos particulares desde pequenos proprietários de terras em Portugal até grandes propriedades na Escócia que desejam fazer esta mudança. Isso é possível, tanto do ponto de vista prático quanto do financeiro, e gostaríamos de ajudá-los a conseguir isso nas suas propriedades. O mesmo vale, é claro, para entidades governamentais! Portugal tem vindo a enfrentar um êxodo crescente do campo para as cidades, com as zonas rurais a terem uma população cada vez menor e mais envelhecida, o que reduz a pressão agrícola nas terras ou o pastoreio excessivo de ovinos e outros animais domésticos, permitindo a recuperação da natureza por si própria. Isso oferece uma oportunidade muito boa de ganhar escala. Temos de encontrar uma maneira de o fazer, porque mesmo que as pessoas não queiram ceder a propriedade das suas terras, podem ainda assim transformar as suas propriedades e a sua gestão e função, juntando-se aos seus vizinhos e agrupando grandes extensões de terra. Isso é possível, financeiramente vantajoso e seria uma grande conquista.
O rewilding marinho também será uma oportunidade muito boa para Portugal, porque aqui temos áreas marinhas incríveis que precisam urgentemente de atenção. Em 2021, na Rewilding Europe, gostaríamos de ouvir propostas das organizações que já trabalham em ambientes marinhos na conservação de natureza e que gostariam de explorar esta oportunidade connosco. Espero que Portugal apresente propostas interessantes também neste tópico.
Como portuguesa, qual é a tua opinião sobre como a conservação da natureza é realizada atualmente em Portugal e como o rewilding pode ser uma oportunidade para aumentar os esforços de restauro no país?
Fiz a minha formação em Portugal, mas a minha experiência de trabalho em território português é bastante pequena, pois saí do país ainda antes de terminar a licenciatura! Trabalhei apenas com a Liga para a Protecção da Natureza (LPN), quer na documentação de provas de crimes ambientais durante a construção da ponte do Tejo, quer de forma breve, em Castro Verde. Depois disso, trabalhei na Guiné-Bissau, nas Caraíbas, em Moçambique e na Zâmbia. Assim, dar a minha opinião sobre a realidade portuguesa não lhe faria justiça. Mas pelo que tenho visto desde o regresso à Europa, Portugal parece ainda não ter despertado para a oportunidade que o restauro da natureza traz ao país.
Outros países estão, por exemplo, a investir nos mercados de carbono. As empresas também estão cada vez mais conscientes de que precisam de fazer mais do que a sua agenda corporativa e investir nesse restauro de habitats e terras, dos quais dependem. Percebi também que a conservação de natureza ainda está muito nas mãos de organizações sem fins lucrativos. À luz do crescente interesse do setor privado em se envolver nestas questões, as ONGs não precisam de fazer tudo sozinhas. Precisam sim de fazer parcerias com o setor privado, de forma significativa e impactante, para fazer a mudança que é necessária em Portugal. A chave é estabelecer parcerias com freios e contrapesos, que evitem o greenwashing.
De um ponto de vista pessoal e refletindo sobre o ano 2021, o que gostarias de ver acontecer em 2022?
Gostaria de ver as pessoas a usufruir muito mais das belas paisagens que temos na Europa. Saiam, deixem os seus computadores e telefones em casa. Experimentem, cheirem e sintam a natureza. Usem-na para se conectarem com aqueles que amam. Esquecemo-nos do quão bonito é este continente… e esquecemo-nos do quanto precisamos dele.