Há histórias que transformam lugares. Histórias feitas de coragem e de passos que são dados mais com o coração do que com o racional, mesmo quando tudo é planeado. Histórias de regresso às origens e de um amor profundo pela natureza e pelos territórios que ainda respiram autenticidade. E estes lugares também transformam histórias, e pessoas. A história de Samuel Ribeiro e Marta Simões é uma dessas histórias — daquelas que não só mudam o rumo de uma vida, mas que ajudam a redesenhar o futuro do Vale da Senhora da Póvoa, em Penamacor e do próprio Grande Vale do Côa.

Hoje, ambos são membros da Rede Côa Selvagem, com os seus negócios próprios, trazendo energia, empreendedorismo e ligação comunitária a um território que tem na natureza o seu maior património. Mas o percurso até aqui foi feito de muitas descobertas, desafios e de um compromisso crescente com o Interior e com o rewilding.
Quando o coração encontra o território a que pertence
Tudo começa em 2015, quando Samuel visita pela primeira vez o Vale da Senhora da Póvoa, terra da família da Marta. O que parecia ser apenas uma visita de verão tornou-se um reencontro inesperado: sem o saber, Samuel já tinha pisado aquelas paisagens em criança, quando visitava familiares na vizinha Moita.
A partir daí, o Vale passou a chamá-lo de volta. Veio para a azeitona, voltou em diferentes épocas do ano, até o madeiro local chamou por si, e pôde explorar a região sem pressa. Em 2017, o casal começou a imaginar ali um projeto de vida — primeiro alojamento, depois outras ideias, até chegarem à certeza essencial: queriam mesmo ficar, independentemente do negócio que decidissem explorar.

Casaram na aldeia em 2019, numa altura em que as férias longas fora das épocas altas lhes serviam de ensaio à mudança definitiva.
O ano de 2020 trouxe incerteza global, mas também clareza para Samuel e Marta. Com o impacto da pandemia — ele sem trabalho, ela em regime remoto — tomaram a decisão que já amadurecia há anos: mudar-se definitivamente para o interior.
Marta continuou o seu emprego, conciliando o trabalho remoto com deslocações semanais a Lisboa. Samuel mergulhou na realidade local: trabalhou em obras, pequenos biscates e começou a dar aulas num ginásio na Guarda. Foi o passo necessário antes de dar o grande salto. Em outubro de 2020, nascia a Beir’Aja, empresa que uniu a formação de Samuel em desporto à paixão pelo turismo, natureza e pelas histórias que a região guarda em cada vale, cada trilho e cada horizonte. E existem poucos contadores de histórias e estórias neste território com a eloquência que o Samuel consegue colocar em cada partilha com quem tão bem recebe.
Crescer devagar para crescer com sentido
Entre o final de 2020 e o primeiro semestre de 2021, Samuel dedicou-se a construir uma rede, criar parcerias e estudar o território como quem aprende uma língua nova — com respeito, curiosidade e tempo.Trabalhou com turistas, mas também com residentes. Uma das parcerias mais marcantes foi com o CLDS4G Penamacor Inclusivo, que permitiu levar aulas de atividade física sénior a várias aldeias —Meimoa, Aranhas, Aldeia do Bispo, Aldeia de João Pires, Vale da Senhora da Póvoa. Estava a criar comunidade, antes mesmo de criar mercado. Uma valência que ainda hoje mantém e coordena com o trabalho turístico, tendo aliás feito várias atividades de ativação física sénior até em aldeias onde a Rewilding Portugal trabalha, oferecendo por isso às comunidades locais oportunidades como esta perto de casa.
Foi nesta fase que surgiu uma das ligações mais transformadoras, e que pode ter mudado o rumo dos acontecimentos, mesmo sem o sabermos na altura: o Samuel foi selecionado para participar no primeiro curso de Guias de Natureza da Rewilding Portugal, na altura no âmbito do projeto LIFE WolFlux, iniciando um caminho de formação contínua com a Rewilding Portugal e a Rewilding Europe.
Desde então, participou em treinos nacionais e internacionais, especializando-se em biodiversidade, identificação de espécies, trekking e, sobretudo, na abordagem rewilding que hoje incorpora de forma exemplar. O crescimento foi lento, consistente e profundamente enraizado.

Entre desafios e renascimentos, 2025 foi ano de colheitas
O início de 2024 abalou as certezas: uma quebra acentuada no negócio levou Samuel a questionar tudo. Mas o segundo semestre trouxe os frutos da persistência — agências com quem tinha falado anos antes começaram finalmente a contactá-lo. E como a vida avança em ecos, setembro de 2024 trouxe outro florescimento: Marta abriu a Mercearia da Saudade, no espaço que pertenceu à sua família, devolvendo ao Vale da Senhora da Póvoa um ponto de encontro, de identidade e de memória. Um comércio local que é, ao mesmo tempo, um gesto de amor pelo território. Esperemos que a Marta o saiba tanto quanto nós o sabemos. E não fica por aqui: entre pequenos-almoços e caterings, a Marta é uma ampla conhecedora da gastronomia local e tradicional e está a levá-la pelo território fora em várias parcerias a ganhar cada vez mais relevo e dimensão.
Depois de anos de esforço silencioso, 2025 revelou-se um ano excecional. A Beir’Aja consolidou-se, as parcerias multiplicaram-se e Samuel afirmou-se como um dos três guias habilitados a acompanhar visitação nas áreas rewilding da Rewilding Portugal — um dos rostos que recebem quem chega para descobrir o Grande Vale do Côa. Autodidata, comprometido e profundamente alinhado com os valores rewilding, Samuel descreve assim o seu percurso recente: “Tenho cada vez mais competências como guia, mais conhecimento de flora e fauna e também mais ferramentas de comunicação de Rewilding e da Rede Côa Selvagem”.
E o negócio está em constante evolução, incorporando cada vez mais práticas sustentáveis e de ligação direta ao património que serve de palco à visitação: tem reduzido o tempo em viatura nos passeios 4×4, privilegiando ações ao ar livre, tem integrado momentos de voluntariado ambiental nos tours a pé, como remoção de invasoras ou descasque de acácias, etc. E não é por acaso, que já sente o impacto do seu trabalho no território: “As aldeias desta região começam a valorizar cada vez mais o seu património natural. Quero acreditar que em parte porque me vêem a ‘vender’ o território e a trazer pessoas para o experienciar”.

A força em continuar de quem ama uma terra
A ligação de Marta e Samuel ao Vale expressa-se num amor visceral, nas tradições que carregam com orgulho e que querem transmitir ao seu filho, agora a ser criado num mundo rural como sempre lhe quiseram proporcionar. “Sou isto e não quero mais nada. O Vale e Penamacor ainda têm um mundo para desbravar”, refere Marta com convicção da escolha certa, e com os olhos postos no que o futuro ainda tem para lhes trazer.
E é justamente esse mundo cá dentro que ela e Samuel ajudam hoje a desbravar — com autenticidade e com a firme vontade de contribuir para um território vivo. A Beir’Aja e a Mercearia da Saudade são mais do que negócios. São manifestações de um compromisso profundo com o interior, com a biodiversidade, com as pessoas e com as tradições que tornam o Grande Vale do Côa tão especial.

É graças a histórias como a de Samuel e Marta que este território continua a crescer, não em massa, mas na sua própria escala e no que nela cabe, com qualidade e conexão, porque chegam pessoas que querem ficar, que criam raízes, que acreditam que o Interior tem futuro, este futuro. E que esse futuro se constrói lado a lado com a natureza.
Celebrar o seu percurso é celebrar o que o rewilding também procura: devolver vida aos ecossistemas e às comunidades humanas que deles fazem parte. Em comunhão.